Tempos atrás me chegou às mãos por empréstimo, o filme “O Morro dos Ventos Uivantes” do clássico literário de Emily Bronté. Ao final de assisti-lo, inspirado no vingativo personagem Heathcliff, interpretado pelo ator Ralph Fiennes, reacendeu-me um sentimento quase esquecido, a vileza.
O que seriam dos super-heróis sem os seus respectivos vilões, incansáveis, determinados, insanos, arrogantes, eternos “Dionisos dos mocinhos”?
Levando-se em conta que, Superman sem Lex Luthor, seria um mero caipira americano atormentado por seu alter ego, é indispensável a presença de um vilão. Muitos sem peito de aço, utilizam sua intelectualidade refinada e sua genialidade criminosa para enredar toda ação do filme ou do quadrinho, pois, já sabemos que no final, seja qual for o obstáculo, o “super irá superar”, redundante mas implacável.
A verdade é que nem todo vilão nasce vilão, essa metamorfose dá-se de maneira profundamente psicológica e ao mesmo tempo tênue, no momento da escolha entre salvar o mundo ou conquistá-lo.
Muitas vezes a vileza não transcende a maldade, pois nem todo vilão é um Mr. Hyde, de Stevenson. Ele pode ser apenas ambicioso como Julien Sorel em “O Vermelho e o Negro” de Stendhal, ou, entre aspas, mortalmente curioso como Raskólhnikov em “Crime e Castigo”, obra de Dostoievski, por exemplo. De um ponto de vista mais prosaico, o vilão pode ser apenas um cara com o saco cheio do mundo.
Pois bem, o filme acaba e enquanto sobem os caracteres, delicio-me com o pulsar romanesco, porém prazeroso, da vil sensação digna dos misantropos.
No entanto, é aí que se descortina uma revelação que ingenuamente eu vinha ignorando. A televisão!
Ela mesmo, à minha frente, ostentando suas quatorze polegadas de vidro, plástico e peças eletroeletrônicas. Como um vilão pego de surpresa, fiquei sem ação, imóvel aos olhos da Medusa de transistores, mas sabendo, como sabe a presa hipnotizada, que o pior ainda estava por vir.
E veio.
Um especial televisivo sobre os famigerados anos oitenta, com direito a depoimento ufanista da atriz Fernanda Torres.
Ninguém merece!
Oh mídia, como és mórbida! Desenterrar tal defundo, reanimá-lo, e enfiá-lo garganta abaixo como se fosse eu, um ardoroso adepto da necrofagia.
Os anos oitenta estão mais uma vez na moda para tortura de pessoas como eu e, desse momento em diante vou abreviar a expressão “anos oitenta” apenas como X, devido a representação nula que essa época me diz respeito.
Satisfazer-se com o saudosismo de tremendas imbecilidades e elogiar produções sócio-culturais medíocres, faz com que me sinta o próprio Coringa que cai de cara no ácido.
Mas você vai me dizer: “-Não só a cultura do descartável teve início nos X, a democracia também se incorporou naqueles anos”, e neste ínterim, te responderei que guardo na memória uma das cenas mais bizarras da história da democracia brasileira. Foi durante a campanha das Diretas Já, quando a cantora Fafá de Belém executa com sua voz irritantemente brega o Hino Nacional Brasileiro, tornando-se assim, até hoje, a cantora oficial do hino em tudo que é evento “importante”. Fatos assim, são suficientemente traumáticos para um adolescente simpatizante de Errico Malatesta.
Agravando sistematicamente o tema, revelo que a maioria dos estudantes da época, que lotaram as ruas com as caras lambuzadas de tinta verde e amarela, aproveitaram o ensejo para “dar o cano” no trabalho e cabular aula, nada mais.
E o Rock? Ah, o Rock dos X, quanta porcaria tive que escutar. Iniciei-me naquela época na cena Heavy Metal, Punk e outras tranqueiras, pois isso me mantinha longe o bastante de coisas como U2, Cazuza, Legião Urbana e tudo da New Wave. Só de digitar esses nomes chego a ter comichões.
O futebol? Ah, o nosso mais poderoso e querido ópio!
A copa do Mundo de 1982 na Espanha, com direito a publicidade exclusiva de Miró, trazia uma seleção brasileira recheada de estrelas não vistas desde a era Pelé. O mau presságio começou embalado por um samba medonho de exaltação nacionalista “cantado” pelo jogador Junior, aquele do Flamengo... “-voa canarinho, voa...”
Somando-se ao Junior, tínhamos ainda Sócrates, Casagrande, Zico, Serginho, Éder, Leandro e Falcão, e o canarinho foi abatido pelo estilingue da seleção italiana, ou melhor, a seleção de um italiano só, o vilão Paolo Rossi, que a crônica esportiva da época levantou dúvidas levianas sobre a sexualidade do jogador, provavelmente para menosprezar o título conquistado pela esquadra azurra. Após isso, juro que em 1986 não acompanhei a Copa do Mundo.
O super-herói de verdade, por sua vez, jamais destrói efetivamente o vilão, pois reconhece em seu íntimo, que estaria sepultando sua própria razão existencial. Eu como vilão dos X, estou poupando os heróis, só pelo fetiche de ser coadjuvante desse revival asqueroso.
Mea Culpa? Talvez!
Éramos adolescentes e vivíamos à margem de sonhos suburbanos, de Rock, de cerveja, futebol e namoro, e ainda assim, tinhamos a estranha fé que a próxima década, num passe de mágica, transformaria nossos sonhos insólitos em felicidade.
Quantos de nós sonharam naqueles dias transformarem-se em músicos, escritores, jogadores de futebol ou artistas plásticos? E estamos hoje atrás de um monitor de PC vagabundo, acatando ordens de um imbecil que esta hierarquicamente acima na pirâmide do puxa-saquismo, e os que não tiveram a coragem de cortar os pulsos, formaram-se em cursos pusilânimes como Direito ou Psicologia, o que me obriga a discordar de Augusto dos Anjos e recitar à toda “Liga da Justiça”: “vês, eu assisti ao formidável enterro da nossa última quimera”.
E a vida meus amigos, parece imitar os quadrinhos. Os vilões são derrotados e não contam a história, pois infelizmente, para muitos nessa guerra, meros espólios são suficientes.
Findo aqui tal paranóia não linear frente à minha própria geração, antes de lembrar que também sobrevivi aos anos noventa e dobrei a esquina finissecular. Passei pelo ataque epilético do Ronaldinho, pela Sandy e Júnior no Rock in Rio, pelos 2920 dias de FHC, pelo Funk Carioca, pelo New Metal e pelo Emocore. Maior sorte tiveram Jackson do Pandeiro, Adoniram Barbosa, Raul Seixas e Paulo Leminski que morreram nos X.
Concluo triste e retoricamente que, nem todo vilão nasce vilão, mas morrerá vilão, tal como Heathcliff.
Kaskadura
0 comentários:
Postar um comentário